quinta-feira, fevereiro 23, 2006

do primeiro Piano...o que terá sido vítima de um "apagamento"...

muitos terão lido outros não...re-publico-o ...porque me apetece :)

O homem do piano

o branco e o negro. o silêncio inteiro. profundo.macio.palpável.
e a cabeça vazia. só mãos. as mãos e o corpo. agora nu. exposto. próximo dela. da morte. respirava-lhe o hálito. denso. doce. dardo a espetar-lhe um dedo de aço nos olhos. que fechou.atacou então o piano. nada de clássicos. nada que antes existisse. uma orgia de sons.de gritos. de bemóis. um festim. uma gruta.e o sexo a dançar-lhe nas mãos. e tocou. tocou até tocar
sanguíneamente o tambor da guerra do fogo. e devagar porque morria depressa e todos os gestos eram de fome começou a lambe-la. como um cão como um lobo sedento e ávido e pária vadio e selvagem. primeiro a raíz dos cabelos fulvos como o sangue enrolados na testa arrepiados no contorno do rosto. desceu aos olhos e selou-os com fios de baba. caiu-lhe na boca. mergulhou-a de água e fez-lhe um ninho de saliva desde a raíz dos dentes à seara da língua agora dançarina. desvairada serpente sem véus nem espadas. apenas boca. profunda. molhada.
o mar o mar o mar a navegar-lhe a garganta. depois a vereda. o pescoço inclinado abrindo sulcos e angulos e vales de pele escorregadia.
e escorregou lentamente sobre os seios altos. retirou a forma triangular com beijos de ostra.bebeu-se no suor que orvalhava como chuva na pele. e parou.

o coração atacava os ouvidos. tocava staccattos intensos. bravios. desconfortáveis. zumbidos de pássaros em cio a cercar-lhe os ombros. e a morte a aproximar-se. altiva. urgente. indomável. gélida. surda.

(mozart entra e toca. toca-me nas costas toda a lacrimoza)

e sentou-se. bem em cima do piano. alargando-me o olhar para o meio das pernas. que abriu. com a tenra teatralidade de um godot quase terno e desesperado. e ali estava a minha casa.naquele sexo ostensivamente vermelho de verão. era dia de colheita. os morangos cresciam. rosados e palpitantes. via-lhes a textura de língua sedenta e o cheiro inquietante.
ébrios de um vício opalino estremeciam à minha frente como chamas. queria tocar. tocar-lhes. atirar-me inteiro naquele dentro que era chão.
e iniciei-me então. ansioso e redondo abri-me como fenda como asa sabendo que a seguir morreria. quando ela fechasse as pernas. o tempo. o silêncio. o piano. tudo. revi em segundos uma vida de enganos e de facas de retornos e de falsos mapas e sem magoa nem medo entrei. todo.entumescido. violento. aceso. nu. a sentir-me maduro. a explodir. a vir-me. como a chuva. como o mar sobre a areia. em noites de temporal.
entrei todo.
e ela fechou as pernas.
anoiteceu.
e o tempo caiu. avé maria de shubert. morri.
e o piano tocou. sozinho

PIANO