sábado, fevereiro 18, 2006

Não consigo dormir nunca mais

O sol fulmina a memória. Limpa-a da crueldade do passado.

NÃO CONSIGO DORMIR, NUNCA MAIS

Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro. Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam a casa. Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que me devora o sonho. Pela janela vejo a linha crepuscular da duna. Um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim. Vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades. Sei, nesse instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação. Afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.
O que dissemos perdeu o sabor e o sentido. Harrar, aden, Lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo. O canto sublime das miragens.
Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.Abri a janela. Avisto uma nesga de céu limpo. Lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou por um insulto. Imitávamos assim a felicidade.
A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas, ideias que se evaporam lentamente. Enfim, o mundo não é assim tão grande...
E a vida, afinal, é como as orquídeas, reproduz-se com dificuldade. Mas estou cansado,- os olhos fecham-seme com o peso das paixões desfeitas. Imagens, que se colam ao interior das pálpebras. Imagens de neve e de miséria, de cidades obsessivas, de fome e de violência, de sangue, de aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos... talvez... talvez uma voz.
o desejo de um sol impiedoso , sobretudo enquanto dormia.
E dezembarquei num cargueiro, desertei um java, pensei mesmo construir uma casa. Mas não foi possível. E digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs,que tudo silencie... e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei. Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos, e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.
Escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui. Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.

(Al Berto- HORTO DE INCÊNDIO)

NOITEESTRELADA

3 Comments:

At sábado, 18 fevereiro, 2006, Blogger antónio paiva said...

.....caro confrade, o teu trabalho é de facto um excelente serviço a todos quantos se expressam na blogosfera.....
Abraço e bom fim de semana

 
At sábado, 18 fevereiro, 2006, Blogger isabel mendes ferreira said...

lindo.....:) Zeca......e eu não sou O mas sim A....





mendes ferreira (isabel)....

























beijo.

 
At domingo, 19 fevereiro, 2006, Blogger Sinapse said...

Entrei para dizer o que afinal já disse a chuvamiuda. Mas repito, com outras palavras: gosto das escolhas, vou começar a passar por cá para partir à descoberta do que nos revelas.
Gostei muito desse post da noiteestrelada - a poesia do Al Berto é muito potente.

 

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