sábado, março 04, 2006

Se os olhos são o espelho da alma, será que mostram a alma ao contrário?

Alguns nunca saberão manejar uma metralhadora. Outros nasceram para isso.
Kabir tem 8 anos no momento da fotografia. É um pouco, ligeiramente, mais alto do que a sua AK-47. A arma está limpa e ele não. A coronha de madeira retráctil faria dela uma peça de colecção na parede de qualquer coronel reformado. Ele, Kabir, é soldado. Mais um raso entre os rasos. E orgulhoso de o ser, creio eu.

Digo que creio mas nunca o saberei. Nada na sua expressão revela o que quer que seja. A AK-47 é mais poderosa do que a minha Leica, sobrevivente a tantas guerras ou - como agora se usa - a tantos conflitos. No entanto, não é a arma que temo mas aqueles olhos. A expressão abísmica da morte nos olhos de um vivo, tornado golem ou zombie voodoo. Suponho, não posso fazer senão supor, que esses olhos ganhem uma luz negra no momento em que as vítimas tombam, mesmo que apenas por alguns segundos.

Kabir não gosta de mim, tem 8 anos e uma kalash na mão, ainda por cima destravada. Disponho de dois minutos para as últimas imagens do rolo e transmito-lhe isso mesmo com os dedos abertos num V de vitória. Depois disparo, viro-me e inicio o regresso pelo caminho de pó. A seguir, dispara ele.

Quando me viro, com a lentidão suspensa de um relâmpago, vejo que sorri num esgar que o olhar insiste em não acompanhar. A seu lado, um outro rapaz morto e uma outra AK-47. Salvou-me a vida mas nem por isso lhe agradeço. Limito-me a fixá-lo. E ele, com um dedo apenas, levanta-o num gesto de significado universal. Então - e só então - lhe digo obrigado.

Prazeres Minúsculos

1 Comments:

At sábado, 04 março, 2006, Blogger João Villalobos said...

Então aqui fica a visita retribuída. Vejo que o meu amigo Luis Rodrigues do designorado também está aqui representado. Um abraço grande.

 

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